O Anúncio do Reino
por Pe. Francisco Eloy (Pe. Ortodoxo Siriano - Brasil)
Domingo, 19 de Março de 2000
I. Antigo Testamento
O Motivo do Reino de Deus situa-se entre os temas centrais da mensagem profética. Sua compreensão vem das entranhas do Antigo Testamento. A ênfase no tema de Deus e do rei e juiz escatológico surgiu no período em que Israel foi influenciado e ocupado por poderes estrangeiros.
Os profetas anunciaram o “Dia do Senhor” em termos de dia de “ira” e de “retribuição” contra a injustiça e a imoralidade (Is 2.12-21, 61.2; Jr 46.10; Sf 1.14-18), ao interpretar a situação de Israel em decorrência da desobediência aos mandamentos de Deus nas decisões políticas e étnicas (Dt 30.11-20).
Entretando, ira e retribuição não são em si objetivos do julgamento de Deus. Na verdade, o julgamento de Deus apenas quer implantar de novo a justiça e a retidão, estabelecendo o Reino de Deus diante dos olhos de Israel e do mundo. Deus instaura a nova aliança com o povo, capaz de afetar todas as nações do mundo. Surgirá daí a comunidade restaurada e todos experimentarão a paz, a justiça e a harmonia.
O Reino de Deus será eterno e universal. O testemunho do Antigo Testamento sabe que Javé é o verdadeiro rei de Israel e louva a Deus por ser a suprema autoridade não apenas sobre o povo de Deus, mas sobre toda a criação: “Elevado sobre os povos todos é Javé, sua glória está acima dos céus” (Sl 113.4). Não obstante o horizonte sombrio do povo de Deus e da história do mundo, a visão do reino escatológico se transforma em fonte de esperança. Deus já foi, de fato “entronizado” tanto hoje como ontem, embora a completa revelação do seu governo ainda está por vir. Ele tem a palavra final. O futuro pertence a Deus.
II. O Reino de Deus na vida e ministério de Jesus de Nazaré
A mensagem profética da soberania libertadora de Deus é assumida plenamente no Evangelho de Jesus, que também desafiou a compreensão contemporânea do Reino. O caminho de Jesus não pode ser entendido sem a nota escatológica que lhe é fundamental. Seu ensinamento e ministério de cura pressupõe que a hora final já chegou: “O tempo está realizado e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho (Mc 1.15).
O testemunho do Novo Testamento em suas muitas vozes confirma unanimemente, à luz da Páscoa, que essa mensagem é verdadeira: na pessoa e no relato de Jesus de Nazaré a soberania de Deus “fez-se carne” de uma vez para sempre definitivamente. Em Jesus, o Reino de Deus estava e ainda está “entre nós” (cf. Lc 17.21). A realidade do Reino se concretiza na pessoa e obra de Jesus Cristo, crucificado e ressurreto. A mensagem de Jesus é, fundamentalmente, as boas da vinda do Reino, com sua reivindicação e promessa libertadoras.
A mensagem de Jesus
A mensagem de Jesus é comunicada freqüentemente por meio de parábolas. Em geral, os ouvintes de Jesus são incentivados a comentar com ele a parábola para enfrentar o desafio de aceitar ou não, livremente, a soberania real de Deus. A maioria das parábolas trata do mistério do Reino e desperta a atenção dos ouvintes com inúmeros elementos de surpresa..
O sermão da Montanha contém muitos elementos pertencentes à essência do Reino. Nas bem-aventuranças, Jesus promete a felicidade do Reino aos conscientes de suas necessidades: pobres, famintos, tristes, odiados (Lc 6.20-23); também aos pobres de espírito, aos aflitos, aos humildes, aos que tem fome e sede de justiça, aos misericordiosos, aos puros de coração, aos pacificadores, e aos que são perseguidos por causa da justiça (Mt 5.3-12).
Obras poderosas de Jesus
As obras poderosas de Jesus, ao lado de suas palavras, fazem com que o Reino de Deus seja uma realidade presente. É o que se vê, por exemplo, nos milagres de cura: eram entendidos como sinais do Reino de Deus, não só pelos estranhos, mas também pelo próprio Jesus: “Mas se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios, então o Reino de Deus já chegou a vós” (Mt 12.28). Além disso, e mais profundamente, a soberania de Deus se realiza não apenas na ação de Jesus, mas também em seu destino pascal, na cruz e na ressurreição. O testemunho evidente do Novo Testamento mostra que no caminho de Jesus de Nazaré, da manjedoura à cruz e ao túmulo vazio, o Reino de Deus já está entre nós. Jesus não apenas ensina, mas concretiza e exemplifica o que diz.
II.a
Senhor Jesus Cristo, perdoa-nos Pela nossa falta de confiança em ti, nossa falta de esperança em teu reinado, nossa Falta de fé em tua presença, nossa falta de confiança em tua misericórdia. Senhor Jesus Cristo, quebranta-nos. Porque somos orgulhosos. Fortalece-nos, Porque somos fracos. Dá-nos humildade, Porque confiamos em nós mesmos. Chama-nos pelo nosso próprio nome, Porque sem ti estamos completamente perdidos.
II.b
Os cristãos proclamam no segundo artigo do Credo Niceno que ele “de novo há de vir com glória”. Quando proclamamos que Cristo retornará, afirmamos nossa fé numa história que não terminará em caos, mas aquele com a qual começou, Alfa e Ômega.
III.
Esta perpectiva de esperança expressa-se com ênfase especial no último livro da Bíblia, o Apocalipse. Sua promessa escatológica relaciona-se com todas as pessoas agora em sofrimento. Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor e nem dor haverá mais (Ap 21.4). As comunidades humanas também serão vistas à luz da esperança. A visão da “cidade santa”, da “nova Jerusalém” e, por fim, “do novo céu e da nova terra” ilumina e instrui nossa responsabilidade e esperança. E não é uma visão utópica. Nós não somos arquitetos da nova Jerusalém; não será uma cidade feita pelos seres humanos. Trata-se da cidade de Deus. A própria voz de Deus pronuncia a promessa: “Eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21.5). Uma vez que fomos libertados por essa promessa podemos continuar a nossa peregrinação na direção do Reino, sem ilusões utópicas, mas com alegre esperança.
A palavra final é de Deus. O futuro lhe pertence. É dele também o juízo final.
Os temas do julgamento e do arrependimento têm sido da máxima importância na compreensão dos dois objetivos do estudo, unidade e renovação em relação com a Igreja. Os cristãos proclamam neste ponto no Credo que Cristo “julgará os vivos e os mortos”. Todos teremos de comparecer perante o julgamento de Cristo, coisa que nos torna humildes. Contudo a visão do julgamento final dá-nos confiança de que a causa da justiça, tão pervertida em nosso mundo pecador, será assumida e restaurada pelo poder de Deus. Os assassinos não triunfarão para sempre sobre suas vítimas.
Experimentamos em nossa vida humana grande tensão entre justiça e amor. Segundo o testemunho da Bíblia, justiça e amor não podem andar separados. Os sere humanos não são justos, mas o juiz é o único que pode ser justo. Os seres humanos não podem escapar de sua própria responsabilidade em face do pecado, mas podem enfrentar o julgamento confiando no amor misericordioso e perdoador de Deus, revelado em compreensão dominante do que significa o ser humano.
III.a
A busca da unidade visível relaciona-se, e assim deve ser vista, com a superação das divisões humanas e com a satisfação das necessidades humanas. Não que a unidade da Igreja seja apenas funcional. Essa unidade deve refletir diretamente a própria unidade e o amor unitivo de Deus. Ao relacionar unidade e missão, serviço e participação nos sofrimentos da humanidade expressamos precisamente o amor de Deus que chamou a Igreja à existência, para ser sinal, antecipação e instrumento da nova humanidade no Reino de Deus.
IV.
A perspectiva do Reino supõe, em segundo lugar, que a Igreja possa ser verdadeiramente reconhecida como parte do mundo, feita de sua mesma “matéria”, muito embora não seja “do” mundo (cf. Jo 15.19). O que na Igreja é reconciliado e renovado é, de fato, o “mundo” separado de Deus. É por isso que o processo da renovação reflui constantemente para o mundo e volta, em seguida, na direção da redenção final.
Mas há também no mundo inúmeras forças de renovação bastante atuantes que podem ser vistas, pelos olhos da fé, como expressões do cuidado constante de Deus pela criação. Quando a Igreja as reconhece percebe logo sua responsabilidade específica e sua missão própria; quando fiel a si mesma e guiada pelo Senhor, “a Igreja não se intimida de ir às margens da sociedade, sem temor de ser confundida ou prejudicada pela agenda do mundo, mas confiante e capaz de reconhecer a presença de Deus em ação nesses lugares”.
Na medida em que a Igreja dá testemunho da consumação final, que é também o futuro do mundo, carrega os problemas do mundo consigo mesma em solidariedade e esperança.
IV.a
Ao procurar corrigir tais distorções a comunidade cristã inspira-se no próprio Jesus Cristo. Nas narrativas do Evangelho todos os contatos com Jesus abrem caminho para uma vida mais abundante tanto para indivíduos como para comunidade. Ele é um mestre que não se impõe como tal sobre os outros, é um servo sem servilismo. Quando Tiago e João pedem que lhes seja concedido um status especial no futuro Reino, Jesus não os repreende por isso, mas lhes mostra que estão pensando como os chefes políticos pagãos que tudo fazem para se “impor” sobre seus súditos. Propõe-lhes um modelo alternativo de poder que é a missão do Filho do Homem de servir em vez de ser servido, e de dar a vida como resgate por muitos (Mc 10.35-45).
A Igreja é chamada a seguir, com a ajuda do Espírito Santo, este modelo para sua vida de comunidade cristã. Ao assim fazer pode se transformar em sinal e instrumento da renovação da comunidade humana, e em forte testemunho da vontade de Deus para que mulheres e homens tenham vida verdadeiramente abundante.
V.
Ofendemos nosso Deus, o Criador do céu e da terra, e blasfemamos contra a vida e uns contra os outros. Só temos recobrado o juízo muito tarde, e não o fazemos nem mesmo agora. Trouxemos sobre nós o juízo severo de Deus infinitamente compassivo e misericordioso por causa da nossa maciça negligência, injustiça e destruição. Imploramos perdão e oramos por uma profunda mudança de coração, uma radical volta a Deus e o caminho da vida, abandonando o caminho da morte.
Devemos viver ainda de acordo como Espírito Santo e captar sua presença em toda a criação. Pois como dissemos acima, o Espírito habita todo o cosmo, dá respiração a toda a vida e afina nossos corações para ouvir o pulso da terra e o caminho da verdade e da beleza.
Em segundo lugar, nossas próprias Igrejas devem ser lugares em que aprendamos de maneira nova o que significa o fato de que a aliança de Deus se estende a todas as criaturas, redescobrindo a dimensão ecocêntrica da Bíblia. Isto significa um estilo de vida materialmente modesto que ama e trata a terra com gentileza, como o faz Deus.
Pe. Eloy |